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A Nova Revolução Chinesa – Parte II: AI 2030 e Belt and Road Initiative

Atualizado: 25 de set. de 2018

Inteligência Artificial está na moda. Desde as grandes organizações até pequenas startups, passando por governos ao redor do mundo, todos parecem interessados (ou pelo menos dizem estar) em investir no segmento. Também puderam. A consultoria PwC estima que, em 2030, esta tecnologia irá contribuir para o aumento de 14% do PIB mundial, o que corresponderá a U$15,7 trilhões! Atualmente, as empresas empregam inteligência artificial nas mais variadas áreas, tendo foco em melhorias de processos, atendimento a clientes, automação de indústrias, aumento de produtividade e redução de custos. À medida que a tecnologia evoluir, vai se tornar cada vez mais onisciente e onipresente, expandindo suas aplicações para outros setores, o que faz com que ter o domínio da mesma seja fundamental para as companhias e, especialmente, nações que queiram ser protagonistas pelas próximas décadas.


Nem tudo são flores. Por todo o mundo há debates sobre como o aumento do uso de AI (vou usar o acrônimo em inglês, por ser o utilizado na literatura mundial) vai resultar em desemprego em massa e que a rapidez com que a mesma está crescendo não dará tempo suficiente para preparar toda uma geração para as mudanças que ocorrerão nos postos de trabalho. Os números e as opiniões variam: os otimistas acreditam que apenas tarefas burocráticas e repetitivas serão automatizadas, liberando os humanos para trabalhar com o que amam; os pessimistas falam em aumento da desigualdade e clamam por soluções, como a renda básica universal. Uma coisa, porém, é certa: a inteligência artificial é uma realidade.


Mas o que é de fato Inteligência Artificial?


Uma explicação simplória é que AI é uma simulação da inteligência humana pelas máquinas, ou seja, sistemas capazes de raciocinar, descobrir, aprender e chegar à conclusões por conta própria, diferente dos softwares tradicionais, que desempenham apenas funções para as quais foram programados.


Com tamanho potencial financeiro envolvido, o tema virou prioridade entre os principais países do planeta. E a China, é claro, não poderia ficar de fora. No primeiro artigo da série “A Nova Revolução Chinesa”, comentei sobre o Made in China 2025, programa dos asiáticos para investimentos maciços em 10 altas tecnologias fundamentais na nova ordem global. Neste segundo artigo, o foco é em outros dois planos ainda mais ambiciosos: o AI 2030 e o Belt and Road Initiative.

A Tencent tem valor de mercado de cerca de U$500 bilhões

AI 2030


Lançado em 2017, o AI 2030 (o nome oficial é “Plano de Desenvolvimento de Nova Geração de AI”) é o programa desenvolvido pelo governo chinês, que almeja dominar e ser referência mundial em inteligência artificial em 2030. O plano é dividido em três fases:

  1. Até 2020, os chineses pretendem igualar os países mais avançados na tecnologia (leia-se Estados Unidos) e estimam que o setor de AI irá gerar diretamente U$22,5 bilhões e ter um impacto em outros setores de U$150 bilhões, tudo isso no mercado interno;

  2. Até 2025, o país quer ser líder em algumas aplicações da tecnologia e estima que a mesma vai gerar, de forma direta, U$60 bilhões, com impacto em outros setores de cerca de U$750 bilhões internamente;

  3. Em 2030, a China quer ser a maior referência mundial e projeta que o mercado interno de AI vai gerar diretamente U$150 bilhões e impactar outros setores em cerca de U$1,5 trilhão.

Os números são de fato impressionantes e, apesar de terem sido divulgados pelo próprio governo chinês (o que dá margem para pensar em uma certa supervalorização), não há motivos para duvidar que os montantes serão astronômicos mesmo – haja visto a já comentada pesquisa da PwC.


Apesar da inteligência artificial ter sido citada em planos anteriores do governo chinês, ela só ganhou proeminência (e um programa exclusivo) a partir de um fato que, para muitos, poderia não ter tamanha importância: a vitória, em 2016, do sistema AlphaGo sobre Lee Sedol, tido como um dos maiores jogadores de Go da história. Go é um jogo de tabuleiro criado na China e muito popular na Ásia, considerado um dos mais complicados que existem e, até então, tido como um desafio improvável de ser dominado por uma máquina. Os chineses se mostraram preocupados com o fato de que o AlphaGo fora desenvolvido por uma empresa britânica (Deep Mind) controlada por uma americana (Alphabet, dona do Google). A preocupação foi tamanha que até simpósios para discutir o assunto foram organizados. Ver uma companhia do Ocidente masterizando um jogo milenar local fez com o governo chinês projetasse este domínio em questões militares no futuro e desse start no AI 2030.

AlphaGo x Lee Sedol: momento histórico para Inteligência Artificial

A corrida armamentista é, sem dúvida, um dos motivadores para o interesse em inteligência artificial. Afinal, parece ser questão de tempo (infelizmente) para que tenhamos armas inteligentes sendo utilizadas e, é claro, quem estiver a frente no desenvolvimento delas terá status de superpotência. Apesar do uso militar não estar descrito no programa e a China falar em padrões éticos e morais para aplicação de AI, fica difícil acreditar que isto não vai acontecer, principalmente quando sabemos que o diretor da Chinese Association for Artificial Intelligence, órgão estatal voltado para a tecnologia, é também um general de alta patente do exército chinês (para ser justo, a DARPA, agência de pesquisa e inovação do Departamento de Defesa dos EUA, também é uma das grandes financiadoras de projetos na área). O AI 2030 mostra que os asiáticos estão mesmo antenados com o que está acontecendo no setor em outros países. O programa cita as estratégias de EUA, União Europeia, Japão e Reino Unido em inteligência artificial como base para desenvolver seu próprio plano.


A Estratégia


O plano do governo chinês é desmembrado em uma estratégia de quatro frentes:

  1. Hardware, com o desenvolvimento da indústria de chips e de supercomputadores;

  2. Bancos de dados, que vão impulsionar os algoritmos;

  3. Atração/formação de profissionais especializados e investimento em pesquisa;

  4. Criação de um ecossistema de AI robusto.

Em relação à indústria de chips, o desenvolvimento vem tanto de investimentos internos (como citei no primeiro artigo, o presidente chinês, Xi Jinping, planeja lançar em breve um fundo de U$47 bilhões exclusivo para o setor, com foco em chips para AI e 5G) quanto de negócios efetuados com empresas estrangeiras, motivo de preocupações de outros países – notadamente os EUA e os que compõe a União Europeia -, que enxergam os chineses como ameaças que “roubam” suas tecnologias e fecham o mercado interno para evitar que o mesmo ocorra com eles. Apesar de ainda estar bem atrás nesta indústria, algumas startups chinesas têm conseguido resultados promissores. Em supercomputadores, os chineses já são destaques, uma vez que, dos 500 mais rápidos do mundo, 202 se encontram por lá, o maior número entre todas as nações.


Sobre bancos de dados, o fato de ter a maior população do mundo faz com que o tamanho desses seja gigantesco e variado, o que é fundamental para desenvolver e aprimorar algoritmos. O grande número de habitantes também facilita o recrutamento para testes de novas aplicações, até porque os chineses são entusiastas de novas tecnologias. Para se ter uma ideia, o WeChat, da Tencent, uma espécie de Whatsapp com mais funções, tem quase 900 milhões de usuários ativos. O Toutiao, app de notícias da empresa Bytedance, é utilizado mensalmente por 700 milhões de pessoas. O acesso de companhias estrangeiras a estes dados, no entanto, é nulo. O já citado protecionismo do governo chinês é pesado nesta área, tanto que as gigantes mundiais de tecnologia têm pouca ou nenhuma entrada no país, garantindo o domínio do mercado interno para as empresas locais. Um exemplo claro deste protecionismo é a lei, de 2017, que proíbe o armazenamento de dados de consumidores chineses externamente.


No entanto, não adianta ter mega planos e aportar bilhões em investimento, se houver escassez de capital humano. Para isso, a China atua em duas frentes: quer atrair profissionais de alto nível na área, tanto chineses quanto estrangeiros, oferecendo salários compatíveis com os do mercado norte-americano (às vezes até maiores) ao mesmo tempo em que desenvolve centros de estudo focados em AI no país. Há um grande número de cidadãos chineses estudando a tecnologia nas principais universidades dos EUA. É comum que empresas do país enviem emissários para recrutar estes estudantes com propostas generosas. Profissionais de renome, como Andrew Ng (ex-chefe do Google Brain) e Qi Lu (ex-vice presidente da Microsoft), também fizeram o mesmo caminho – apesar de que Ng, após três anos no Baidu, retornou aos EUA. A Sensetime, sobre a qual falo melhor mais abaixo, tem, por exemplo, 150 Phds em seu staff e já publicou mais de 120 artigos sobre o assunto desde 2015 (mais do que Facebook e Google).


Iniciativas internas também estão sendo introduzidas para desenvolver formação e pesquisa em AI. Recentemente foi anunciada a construção de um parque tecnológico em Pequim focado no setor, com investimentos de U$2,1 bilhões. Tencent, Baidu e Alibaba também construíram centros de pesquisa; a última anunciou, em outubro do ano passado, que irá aportar U$15 bilhões nos próximos três anos em P&D de altas tecnologias, entre elas a inteligência artificial.


Os esforços do governo chinês para melhorar a qualidade das instituições de ensino locais parecem estar dando resultado: ranking divulgado recentemente pela Times High Educationmostra que sete das dez melhores universidades entre os países emergentes são da China. A distância para os EUA ainda é enorme e dificilmente será superada, mas é provável que, nos próximos anos, vejamos alguma instituição chinesa entre as melhores do mundo.


A última frente da estratégia é o desenvolvimento do setor comercial de inteligência artificial no país. Ele passa por investimento massivo do governo e do setor privado em startups e, principalmente, pelos chamados “quatro vencedores”: Alibaba, Tencent, Baidu e iFlytek. As duas primeiras apresentam números impressionantes: o Alibaba Group, que compreende desde e-Commerce até computação em nuvem passando por logística (“a Amazon chinesa”), tem valor de mercado superior a U$500 bilhões e receitas anuais na casa de U$250 bilhões. A Tencent não fica atrás, também avaliada em cerca de meio trilhão de dólares e receitas anuais próximas dos U$240 bilhões. Baidu e iFlytek são mais “humildes”: valem U$93 bilhões e U$77 bilhões, respectivamente. A última, aliás, chamou atenção ao desenvolver um sistema capaz de ser aprovado no exame nacional de medicina com pontuação semelhante aos Top 5 candidatos.

O ecossistema chinês de AI é o segundo maior do mundo: 23% das empresas existentes no setor são de lá, atrás apenas das 42% dos EUA. Porém, quando o assunto é recebimento de investimentos por parte de startups de inteligência artificial, o cenário se inverte. Em 2017, dos U$15,2 bilhões aportados mundialmente nessas novas empresas, 48% foram em companhias chinesas, contra 38% em americanas. Foi a primeira vez que isto aconteceu. Não à toa, a supracitada Sensetime tornou-se recentemente a startup do setor mais valiosa do planeta, com valuation na casa dos U$3 bilhões. Sua principal tecnologia é um software de reconhecimento facial, utilizado, entre outros, pelo governo local para vigilância.


Ainda atrás dos EUA


Apesar do claro avanço no desenvolvimento de AI, a China ainda permanece bem atrás dos EUA, de acordo com um índice que mede as capacidades dos países, criado por Jeffrey Ding, pesquisador da universidade de Oxford (aliás, recomendo bastante o relatório que Ding escreveu detalhando o AI 2030; este relatório baseou grande parte deste artigo e pode ser lido aqui). De acordo com o índice, somente em base de dados e investimentos captados por startups os asiáticos levam vantagem. Nos demais pontos mensurados, os americanos seguem na liderança, como mostra o quadro abaixo.

Tabela produzida por Jeffrey Ding, da Oxford University

Apesar da diferença, todas as evidências mostram que o gap está diminuindo consideravelmente ao longo dos anos. Tanto que, esta semana, a Casa Branca reuniu mais de 100 líderes de empresas de tecnologia e de investimento para discutir o presente e o futuro de AI no país e a ameaça chinesa. Do encontro, surgiu um comitê especializado no assunto, envolvendo membros do governo americano, da academia e representantes das organizações que atuam na área. Por mais que haja colaboração acadêmica e financeira entre companhias de ambos os países – o Alibaba Group é listado na Bolsa de Nova York, por exemplo -, no fundo fica claro que os projetos são distintos e que estar no topo em uma tecnologia tão proeminente importa sim, especialmente para os planos de expansão de influência para outras regiões do planeta.


A pressa dos chineses em evoluir a inteligência artificial, aliás, passa justamente pela criação de padrões que irão ditar os rumos do setor no futuro. O país asiático quer seguir o que os americanos fizeram com a internet, quando criaram a tecnologia e estabeleceram os principais padrões de uso, facilitando suas empresas a se tornarem referências mundiais. A China pretende fazer o mesmo e conta com outro plano ousado para ajudá-la: o Belt and Road Initiative.


Belt and Road Initiative


O Belt and Road Initiative é um plano fundamental para que o Made in China 2025 e o AI 2030 consigam alcançar suas metas. Lançado em 2013 por Xi Jinping, a iniciativa tem como objetivo oficial integrar diversos países economicamente, criando “rotas” de comércio entre eles por meio de investimentos pesados em infraestrutura, notadamente ferrovias, rodovias e portos. São cerca de 70 países da Ásia, África e Europa, que correspondem a cerca de 65% da população e 40% do PIB mundiais. Porém, o projeto vem aumentando e nações da América Latina também se tornaram alvo dos chineses.


As comparações com o Plano Marshall (desenvolvido pelos EUA para ajudar a reconstruir a Europa pós-Segunda Guerra) são inevitáveis, porém infundadas. A começar pelo montante de capital envolvido: enquanto o programa americano custou cerca de U$130 bilhões em moeda atual, no BRI estimam-se impressionantes U$1 trilhão, apesar desse valor não estar confirmado. Outra diferença é que, no primeiro, 90% da quantia foi doada, enquanto no segundo tratam-se de empréstimos. Por fim, o Plano Marshall teve aporte do governo americano apenas, enquanto no Belt and Road também há capital privado envolvido.


No entanto, os verdadeiros objetivos da China vão muito além de financiar projetos de infraestrutura em outros países. Por meio do BRI, o gigante asiático pretende expandir sua influência globalmente e abrir novos mercados para sua crescente indústria ganhar escala. Segundo relatório do Lowy Institute, think tank australiano, o governo chinês tem três interesses principais com a iniciativa:

  1. Estimular o desenvolvimento de regiões menos abastadas do país, por meio de uma integração com as nações vizinhas (como no caso do corredor econômico China-Paquistão, que liga a região sub-desenvolvida de Xinjiang ao porto na cidade paquistanesa de Gwadar);

  2. Fomentar a indústria nacional, em especial a tecnológica, ajudando a implementar padrões chineses  a fim de acabar com a hegemonia dos padrões americanos (diz-se no país que empresas de 3ª linha fazem produtos, de 2ª linha desenvolvem tecnologia e de 1ª linha criam padrões mundiais);

  3. Dissipar o excesso de capacidade de produção e estoque de materiais como aço e cimento, não só por meio de exportações, mas principalmente pela transferência de maquinário para outros países que demandam melhorias em suas estruturas. Isso permitiria foco maior nos setores de alta tecnologia.

Porto de Hambantota, no Sri Lanka

O BRI, porém, tem sido alvo de constantes críticas ao redor do mundo. Alguns falam que o plano é confuso e que falta transparência. Outros alegam que a maioria dos projetos não saiu do papel. Em muitos países levantam-se preocupações sobre a capacidade de pagar tais empréstimos (no Sri Lanka, por exemplo, o porto de Hambantota, financiado pelo governo de Xi Jinping por U$1,1 bilhão, foi vendido aos próprios chineses para abater o débito, o que custou a reeleição do então presidente Mahinda Rajapaksa em 2015). Na Malásia, o excesso de influência da China também vem causando bastante desconforto na população, com acusações de um relacionamento de mão única. Ao invés de movimentar a economia local, contratando trabalhadores e empresas de lá, os chineses costumam importar empregados e equipamentos de seu próprio país, fazendo com que os benefícios circulem apenas entre si.


Porém, quem pensa que a influência do gigante asiático se resume a países mais modestos do continente e da África se engana redondamente. Um levantamento da Bloombergmostra que, nos últimos 10 anos, os chineses investiram cerca de U$318 bilhões em ativos dos mais variados na Europa, 45% a mais que os EUA. Foram aproximadamente 360 companhias adquiridas dos mais variados setores (como a italiana Pirelli, de pneus), além de aeroportos, portos, fazendas de energia eólica e vários clubes de futebol. Isso sem contar em participações acionárias em empresas de peso, como a Daimler AG, fabricante da Mercedes-Benz.

Gráfico da Bloomberg mostra como os chineses foram às compras na Europa desde 2008

Por tudo o que foi apresentado nesta série de dois artigos, fica mais do que claro que não dá pra duvidar das intenções e da capacidade da China em se tornar a maior potência mundial na próxima década ou duas. Óbvio que os outros países já perceberam a ameaça e se movimentam para não perder terreno. As fortes acusações e possíveis barreiras tarifárias de Donald Trump têm como objetivo maior frear os planos de Xi Jinping, muito mais do que equilibrar a balança comercial entre as nações.


Resta saber se tais atitudes serão suficientes ou se precisarão ser ainda mais rigorosas. Aguardemos os próximos capítulos.

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