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A Comida do Futuro – Parte I: agricultura celular, as carnes produzidas em laboratório

Atualmente a população mundial é de cerca de oito bilhões de pessoas. Segundo a ONU, este número deve chegar a 9,8 bilhões em 2050 e 11,2 bilhões em 2100 em função, principalmente, de avanços na medicina que permitem que a expectativa de vida média  permaneça em constante crescimento. Este aumento, somado a uma melhor renda per capita em países em desenvolvimento (o que modifica a dieta das pessoas), irá fazer com que a demanda por comida também cresça consideravelmente. Um estudo de 2013 da Associação Internacional de Economistas Agricultores estima que, em 2050, ela aumentará entre 59% e 98%. Porém, há dúvidas se o setor agropecuário será capaz de suprir esta nova demanda, por motivos que vão desde o baixo investimento em infraestrutura para escoar as produções e novas tecnologias agrícolas que melhorem a produtividade no campo até escassez de mão-de-obra.  No entanto, talvez o maior problema associado a um aumento na produção agropecuária seja ambiental. Estima-se que 30% das emissões de gases poluentes sejam efetuadas pelo setor. O crescimento no consumo de carne empurra este número ainda mais para cima. Segundo projeções, a carne vermelha terá seu consumo anual no mundo saltando de 72 milhões de toneladas em 2009 para 83 milhões de toneladas em 2030. Isso corresponde a emissão de 1.300 milhões de toneladas de gases poluentes na atmosfera, grande contribuição para o aquecimento global.


Para lidar com todos esses problemas, algumas iniciativas surgiram e estão surgindo mundo afora. Umas, mais avançadas, já podem ser encontradas por consumidores para compra; outras ainda estão em desenvolvimento, mas têm grande potencial de disrupção, o que atrai investidores de olho em inovações. Nesta série de três artigos, vou abordar o futuro da comida. Hoje falo sobre agricultura celular, que produz a clean meat, carne feita em laboratório, sustentável e sem o abatimento de animais. Nos próximos, comentarei sobre carnes feitas a base de plantas, além dos robôs que estão sendo desenvolvidos para substituir humanos nas cozinhas.


O primeiro hambúrguer produzido em laboratório, em 2013

Carne feita em laboratório


Como citado no início do artigo, a produção de carne causa impacto profundo no meio ambiente, seja pelo uso excessivo de água, desmatamento ou emissão de gases poluentes. Por conta disso, várias empresas estão testando uma nova forma de se obtê-la: produzindo-a em laboratório, na chamada agricultura celular. Sim, isso mesmo. Este tipo de carne é conhecido como clean meat (carne limpa, em português) por, teoricamente, diminuir bastante seu impacto ambiental e não causar sofrimento aos animais. Estima-se que a agricultura celular use 100 vezes menos espaço e 5,5 vezes menos água que a forma tradicional. Funciona, basicamente, assim: cientistas coletam parte de tecido de um animal, filtram e isolam células-tronco, capazes de se desenvolver por conta própria; para isso, eles precisam prover oxigênio, sais mineiras, açúcares e proteínas, o que faz com que as células sejam “enganadas” a pensar que ainda estão dentro de um organismo; dessa maneira, elas seguem se multiplicando e crescendo, formando músculos, gordura e tecidos conectivos normalmente. Há, no entanto, um problema importante nesse processo: o meio usado para “alimentar” as células hoje ainda é o soro de sangue de animais, o que não só contraria o argumento de se eliminar o sofrimento deles, mas também é um impeditivo em termos de valor. O custo do primeiro hambúrguer produzido em laboratório, apresentado em 2013, foi de U$330 mil. Apesar dos custos estarem caindo, ainda são proibitivos e, por conta disso, as companhias têm investido em pesquisa para conseguir novas formas de se alimentar as células com bem menos ou, idealmente, nenhum soro animal no processo, como usando plantas por exemplo. A expectativa é de que estes produtos estejam disponíveis aos consumidores nos próximos dois a três anos com um preço ainda alto, e, nos próximos 10 anos, consigam competir em custo com as carnes tradicionais.


A lista de empresas apostando nessa área é grande e envolve vários tipos de carne, além de outros produtos de origem animal: a Memphis Meats já produziu almôndegas e agora também foca em frango e pato; a SuperMeat trabalha com frangos; a MosaMeat é especializada em hambúrguer; a JUST está desenvolvendo foie gras, que, na sua forma tradicional, é feito de maneira polêmica, forçando patos a se alimentarem para aumentar o tamanho de seus fígados (a prática é, inclusive, banida na Califórnia); a Finless Foods foi pelo caminho dos peixes, preocupada com a pesca predatória que está alterando ecossistemas ao redor do mundo; o New Harvest é um instituto de pesquisa sem fins lucrativos, que financia diversos projetos em agricultura celular; da New Harvest surgiram duas empresas, a Perfect Day, que produz leite sem vacas, e a Clara Foods, que produz ovos sem galinhas.

Almôndega produzida pela Memphis Meats

Mesmo sendo um mercado que só deve ter retorno no médio-longo prazo, o mesmo vem atraindo investidores de peso que estão apostando alto. A holandesa MosaMeat, que produziu o hambúrguer de milhares de dólares, foi financiada por Sergey Brin, co-fundador do Google. Em setembro de 2017, o governo chinês anunciou um acordo para importar U$300 milhões em carne feita em laboratório de três empresas israelenses (SuperMeat, Future Meat Technologies e Aleph Farms). O gigante asiático é o maior consumidor de proteína animal no mundo e tem planos de reduzir este consumo em 50%.  A Memphis Meats já recebeu U$20 milhões em aportes de pessoas como os bilionários Bill Gates e Richard Branson, além de Jack Welch, lendário CEO da GE. O maior sinal de que há potencial neste segmento, entretanto, é o fato de que a Tyson Foods e a Cargill, duas das maiores produtoras de carne do mundo, também são investidoras na Memphis. As multinacionais estão atentas às possibilidades de disrupção em seus negócios. Isso sem contar nos ínumeros fundos de capital de risco que estão colocando dinheiro na jogada.


Há, porém, obstáculos consideráveis a serem superados. Os já citados altos custos são um deles. Enquanto estiverem elevados, o ganho de escala na produção em laboratório será complicado, um fator impeditivo para a adoção em massa dos produtos. Outro obstáculo é a aceitação das pessoas. O termo “carne feita em laboratório” assusta, por sua relação com algo artificial, totalmente fora dos padrões que a sociedade está acostumada. Superar isto certamente não será tarefa fácil. Há ainda a desconfiança quanto aos efeitos para a saúde humana destes produtos. A Friends for Earth, uma ONG focada em meio-ambiente, divulgou um relatório em junho cobrando das empresas estudos que comprovem que os produtos são próprios para consumo e não prejudicais aos seres humanos. A FDA, agência reguladora de comida e medicamentos dos EUA, também está acompanhando isto de perto. Agora em julho irá promover uma reunião com os diversos players envolvidos para discutir como irão regular este novo mercado. A Friends for Earth ainda coloca em dúvida se a adoção da agricultura celular é de fato um benefício ao meio-ambiente, pois faltam pesquisas que atestem isto. Uma das poucas que existem, aliás, sugeriu o contrário: apesar de usar menos espaço, o grande consumo de energia apresentaria outras questões ambientais a serem resolvidas. Outra fonte de problema é o ataque dos interessados no mercado de carne do jeito que está. A Associação de Pecuaristas dos EUA, por exemplo, entrou com uma petição junto ao Ministéria da Agricultura americano para que somente produtos extraídos da criação de animais e seu abatimento sejam chamados de carne ou bife.

O frango frito da Memphis Meats

O caminho, pelo visto, será longo até que as carnes feitas em laboratório tornem-se viáveis comercialmente, mas é difícil discordar de que isto acontecerá. Competir com a indústria tradicional de carne, no entanto, é outra história. O objetivo, aliás, não é acabar de vez com a pecuária, até porque milhões de pessoas ao redor do mundo vivem dela. Porém, somente reduzir esta produção já seria de grande valia ao planeta.


O vídeo abaixo, produzido pela Wired, é uma reportagem que fala um pouco mais sobre o assunto, inclusive entrevistando os executivos da JUST e da Finless Foods.

No próximo artigo da série “A Comida do Futuro”, falarei sobre as carnes feitas a base de plantas, que estão em destaque nos Estados Unidos, além das comidas produzidas em impressoras 3D.

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